Deborah Arantes
O presente artigo discursa sobre a proposta da Didática da Matemática, teoria que tem suas bases nos estudos piagetianos, sob o olhar da neurociência. A neurociência, dentro de suas ramificações, como a neuropsicologia e a neuroeducação, traz valiosas contribuições à prática pedagógica. Mais do que conhecer como funciona o cérebro humano, sua fisiologia e função psicológica, cabe ao professor identificar como cada aluno aprende e, consequentemente, planejar sua aula de forma a atendê-lo em suas particularidades. O ensino da matemática, ao longo de décadas condicionado ao treino de técnicas e algoritmos, afastou a construção do conhecimento do aluno, não o considerando capaz de produzi-lo por si próprio utilizando amplamente suas funções cerebrais. O conhecimento era disposto de forma linear, segmentado , que o tornava sem sentido para o aluno.
Relacionando
a Teoria das Situações (Guy Brousseau)¹ à neurociência, é possível compreender
e estabelecer o verdadeiro papel da memorização como algo inerente à
aprendizagem, com a função de reter conhecimentos para uso futuro,
possibilitando conexões entre os saberes. “Sem memória os processos de
aprendizagem estariam sempre a iniciar-se, estando em causa todo o processo de
adaptação do ser humano. É a partir de aprendizagens retidas que se processam
novas aprendizagens. É a memória que permite que as aprendizagens se mantenham
e que possam ser usadas quando necessário” (CASTRO, 2004, p. 11)². A
aprendizagem baseia-se em uma hierarquia de experiências, acontecendo em uma
espiral dialética, com funções superpostas e interligadas.
Diante
desse pressuposto, a Didática da Matemática traz a resolução de problemas como
a essência da atividade matemática, em que é apresentado ao individuo um
desafio possível de ser resolvido, que requer solução, em que a resposta pode
ser única, porém o caminho para se chegar podem ser vários. Nesses caminhos, o aluno utiliza
conhecimentos prévios, ou seja, aprendizagem já retida, para chegar a um novo
patamar de seu conhecimento.
Observando
o momento histórico da proposta de Brousseau, um dos colaboradores de Piaget, a
visão dominante no campo da Educação era essencialmente cognitiva, visto que
seus estudos evidenciavam o papel central da ação no desenvolvimento, a
originalidade do pensamento matemático e as etapas de seu desenvolvimento
nas crianças, sem contudo observar como o aluno aprendia cada conceito e que
relações a criança estabelecia entre elas para que existisse a aprendizagem.
Esses fatos encaminharam Brousseau (1996) a “(...) um estudo mais profundo
sobre as condições que levariam um sujeito a usar de seus conhecimentos para
tomar decisões e a estudar as razões dessa tomada de decisão” (ALMOULOUD, p.2,
2004a)³. Surge assim, a Teoria das Situações. O pesquisador sugere o triângulo
didático,
SABER
PROFESSOR ALUNO
demonstrando,
dessa forma, que o indivíduo aprende na relação com o objeto de conhecimento e
com o meio. O professor age como mediador e facilitador da aprendizagem,
deixando, num primeiro momento, que o aprendente percorra por si próprio o
caminho que o levará a resolução do problema.
Analisemos
cada situação descrita por Brousseau:
·
Situações de devolução: o professor propõe
uma situação desafiadora, cujo conteúdo implícito propicie ao aluno levantar
conhecimentos prévios.
·
Situações de ação: o indivíduo coloca em jogo
o que sabe, escolhendo ou elaborando estratégias de resolução, fazendo
tentativas na busca pela resolução.
·
Situações de formulação: em contato com o
novo conhecimento, o aluno formula sua hipótese de resolução, buscando adequar
sua linguagem e pensamento
·
Situações de validação: nesse momento a
socialização da estratégia utilizada permite ao aluno elaborar o pensamento
para transmitir da forma mais adequada o que pensou, fazendo uso de uma
linguagem matemática.³
·
Situação de institucionalização: a intenção
do professor surge nesse momento, dando sentido a esse conhecimento, sendo este
último oficialmente aprendido pelo aluno e o professor reconhecendo essa
aprendizagem.
Durante
atividades de resolução de problemas, com o objetivo de observar e analisar
como as crianças estavam operando com determinados conceitos matemáticos,
propus algumas atividades em uma sala de aula de 4º ano, em que os alunos,
organizados em duplas, foram apresentados aos seguintes problemas:
Problema 1. “No supermercado
havia a seguinte oferta: leve 4 pacotes de bolachas e pague R$3,00. Luciana
levou 12 pacotes de bolachas. Quanto pagou por eles?”
Algumas resoluções:
Focando
os estudos da neurociência, observamos que durante as situações descritas
acima, as duplas de alunos estão diante de uma situação em que o cérebro precisa
buscar aprendizagens anteriores (memória) e fazer relações com o que precisa
ser resolvido (sinapses), reagindo aos estímulos do ambiente: mediação do
professor, socialização (expressar-se com linguagem adequada em duplas e em
grupos maiores), sendo a aprendizagem uma ação social. Diante de novos
desafios, o individuo sente-se motivado e encorajado ao saber que poderá
utilizar estratégias pessoais para resolver, fazendo associações entre
experiências prévias e as atuais. Alunos com deficiência intelectual também
foram apresentados ao problema e, utilizando o registro com desenho,
conseguiram chegar ao resultado.
Outra
situação:
“Em uma lanchonete,
João e Lucas pediram um sanduíche de presunto e queijo, um x-salada e dois
sucos de laranja. O x-salada custava R$ 4,50, o sanduíche , R$ 2,70 e os sucos, R$ 1,80 cada. Com
R$15,00 foi possível pagar a conta? ”
Os
alunos utilizaram conhecimentos de que dispõem: sabem que “reais” devem ser
separados de “centavos” e concluíram que havia a necessidade de somar os
valores obtidos. Segundo o ensino tradicional, esta operação seria considerada
incorreta por não ter sido resolvida da maneira convencional. Porém, quando
vamos ao supermercado, o mais prático não é realmente somarmos os “inteiros” e
depois acrescentar os centavos? Isso exige de nós, adultos, competências que
fomos adquirindo no dia-a-dia, ao realizarmos cálculos em situações
cotidianas. Podemos ignorar essa
estratégia utilizada acima por não ser efetuada nos padrões convencionais do
algoritmo, principalmente sabendo que este foi o primeiro problema apresentado
à turma envolvendo números racionais?
Esta estratégia, após a validação, em que foi socializada juntamente com
outras, e tendo surgido também o algoritmo convencional , foi bastante
explorada em sala de aula, a fim de verificar sua potencialidade para resolver
essas situações. Dessa forma, as crianças tinham, a partir desse momento, duas
maneiras de pensar e resolver situações semelhantes.
Concluindo,
situações como essas propiciam a aprendizagem, ativando áreas do córtex
cerebral no transcurso dessa nova experiência de aprendizagem, pois refletem o
contexto real, e, sendo novas, se ancoram em compreensões anteriores. São
situações contextualizadas, pois permitem ao aluno acionar saberes já
existentes, influenciando a consolidação de novas memórias. O professor tem um
papel fundamental nessa perspectiva de trabalho , visto que é necessário
conhecer o nível de conhecimento de cada aluno, pensar nas duplas produtivas de
acordo com a Zona de Desenvolvimento Proximal (VIGOTSKY), tornando o ambiente
da sala o mais propício possível ao aprendizado e planejar atividades que
instiguem o cérebro dos alunos a recorrer a suas funcionalidades como
ferramentas para chegarem ao resultado e à aprendizagem.
Ressalto
que atividades como essas foram aplicadas a alunos com deficiência intelectual,
adequando-as ao nível de aprendizagem, respeitando os limites de cada um, sendo
o resultado igualmente positivo.
O
trabalho com a Teoria das Situações em outras áreas de ensino tem promovido
grandes avanços pedagógicos, possibilitando ao aluno entrar em contato com o
objeto de conhecimento, acionando seus saberes e construindo conexões que o
levarão a aprender dentro de seu potencial e de suas capacidades. A
neurociência possibilita entendermos como essa Teoria age sobre o individuo de
forma eficaz, estimulando a aprendizagem.
²
CASTRO, Elisa. Memória e Aprendizagem – Aquisição e retenção de saberes.
Mestrado Educação, 2004
³ “As situações de devolução, ação, formulação
e validação caracterizam a situação a-didática, onde o professor permite ao
aluno trilhar os caminhos da descoberta, não revelando ao aluno sua intenção
didática, tendo somente o papel de mediador.
Estas fases têm um componente
psicológico favorável, pois engaja o aluno na sua própria aprendizagem e o
predispõe a ser o coautor de seu processo de aprendizagem, dentro de um projeto
pessoal do aluno em relação ao conhecimento. “ (Wagner Marcelo Pommer, SEMA –
Seminários de Ensino de Matemática/ FEUSP – 2º Semestre 2008)
Confesso nunca vi o termo "Teoria das Situações" embora reconheça muito dessa teoria em muitas práticas já vivenciadas ou observadas e analisadas. Texto muito esclarecedor. Preciso ler "Memória e Aprendizagem _ Aquisição e retenção de saberes" na integra, deve ser ótimo. Obrigado.
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